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Inteligência Artificial, memória humana e o lado sombrio dos Testes de QI: o que a ciência revela e esconde


Ilustração mostrando um cérebro humano estilizado conectado a uma rede neural digital, com fragmentos de imagens antigas de estudos de memória e documentos relacionados a testes de QI, simbolizando a relação entre inteligência artificial, neurociência, e a história dos testes de inteligência.
Interconexão entre IA, descobertas sobre a memória humana a partir do estudo de cérebros lesionados e a controversa história dos testes de QI, destacando as influências da neurociência na tecnologia e os desafios éticos resultantes


Esta é uma reflexão sobre Inteligência Artificial, mas de forma crítica através da história da ciência cognitiva e neuropsicológica. A inteligência artificial (IA) é frequentemente descrita como a capacidade de uma máquina emular comportamentos humanos inteligentes. No entanto, a definição exata de "inteligência" e o que constitui "comportamentos inteligentes" têm sido temas de debates intensos em diversas áreas do conhecimento, como filosofia, psicologia e biologia. A IA surgiu como uma ciência multidisciplinar, extraindo conceitos e metodologias dessas áreas para criar sistemas que possam resolver problemas que a computação tradicional não consegue abordar de forma eficaz.


Ao analisar o desenvolvimento da IA, é crucial entender as raízes da ciência cognitiva e neuropsicológica, que forneceram insights fundamentais sobre como o cérebro humano processa informações e armazena memórias. Um exemplo marcante é o caso de Henry Gustav Molaison, conhecido como paciente HM. Após uma cirurgia para tratar sua epilepsia, que envolveu a remoção de partes cruciais do cérebro, como o hipocampo, HM perdeu a capacidade de formar novas memórias. Estudado extensivamente por neurocientistas, seu caso revelou a importância do hipocampo no armazenamento de memórias de longo prazo, estabelecendo um vínculo direto entre estrutura cerebral e função cognitiva. Este caso não apenas revolucionou nossa compreensão da memória, mas também inspirou abordagens em IA que tentam replicar o armazenamento e a recuperação de informações, fundamentais para o desenvolvimento de sistemas de aprendizagem de máquina.


Outro caso histórico que influencia nossa compreensão da mente e da linguagem é o do paciente Louis Victor Leborgne, conhecido como "Tan". Este paciente, estudado por Paul Broca, foi incapaz de pronunciar qualquer palavra além de "tan", apesar de suas funções cognitivas e motoras estarem em grande parte preservadas. A autópsia de Broca revelou uma lesão no lobo frontal esquerdo, levando à identificação da área de Broca, crucial para a produção da fala. Esta descoberta evidenciou a especialização de funções cerebrais e lançou as bases para a neurociência moderna. Em IA, a compreensão da linguagem e a sua produção são desafios centrais, e os sistemas modernos de processamento de linguagem natural (PLN) são, em parte, uma tentativa de emular essas funções humanas complexas.


No entanto, nem todas as tentativas de quantificar a mente humana foram tão éticas ou esclarecedoras. A história dos testes de QI, como detalhado por Stefan C. Dombrowski, é um exemplo sombrio de como a ciência pode ser mal utilizada. Desenvolvidos inicialmente para identificar crianças que precisavam de apoio educacional, os testes de QI rapidamente se tornaram ferramentas de discriminação. Na Primeira Guerra Mundial, foram usados para classificar recrutas, e suas interpretações equivocadas apoiaram ideologias eugênicas que resultaram em políticas de esterilização forçada e até genocídio. A crença de que uma única pontuação poderia resumir a inteligência de uma pessoa ignorou a complexidade e a diversidade da capacidade humana, e hoje, mesmo que os testes de QI ainda sejam usados para identificar necessidades educacionais, a comunidade científica rejeita a ideia de que eles possam determinar o potencial total de um indivíduo.


Essas histórias não são apenas marcos na evolução da neurociência e da IA, mas também servem como lembretes poderosos de como nossas tentativas de entender a mente e replicar suas funções em máquinas podem ter consequências profundas e duradouras. A busca por uma IA verdadeiramente inteligente deve, portanto, ser abordada com cautela, reconhecendo os limites das ferramentas que usamos para medi-la e o impacto ético das aplicações que desenvolvemos.


A inteligência artificial, ao buscar emular as capacidades humanas, inevitavelmente espelha as descobertas e os erros do estudo do cérebro humano. Desde o paciente HM, que nos ensinou sobre o papel crucial do hipocampo na memória, até os testes de QI, que revelam os perigos da simplificação excessiva da inteligência, a jornada para entender e replicar a mente humana é complexa e repleta de desafios éticos. A reflexão crítica sobre esses aspectos é essencial para garantir que o avanço tecnológico seja acompanhado de um compromisso com a justiça e a humanidade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DE APROFUNDAMENTO


KANDEL, Eric R.; SCHWARTZ, James H.; JESSELL, Thomas M. Princípios de Neurociência. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.


SCOVILLE, William B.; MILNER, Brenda. Loss of recent memory after bilateral hippocampal lesions. Journal of Neurology, Neurosurgery & Psychiatry, v. 20, n. 1, p. 11-21, 1957.


DAMASIO, Antonio R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.


FLYNN, James R. What Is Intelligence? Beyond the Flynn Effect. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.


DOMBROWSKI, Stefan C.; MCGILL, Ryan J. The Intelligence Testing Enterprise: Psychological, Ethical, and Social Aspects. Journal of Applied School Psychology, v. 34, n. 2, p. 121-138, 2018.

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