top of page

Quando o amor de mãe não acontece: as feridas invisíveis de um vínculo fraturado

Nem toda relação entre mãe e filha nasce do afeto. Às vezes, nasce da ausência dele. Há histórias em que o amor materno não floresce, e no lugar dele crescem silêncios, críticas e feridas que atravessam a infância, a juventude e chegam até a vida adulta. O que acontece quando uma filha cresce sem afeto, dentro de uma casa onde a presença da mãe é física, mas o carinho é sempre negado? Neste texto, uma análise profunda e embasada revela como traumas geracionais, rejeições inconscientes e dinâmicas familiares silenciosas moldam um vínculo materno marcado não pelo cuidado, mas pela dor.


Pintura impressionista de uma mulher idosa e uma mulher jovem sentadas lado a lado, em ambiente fechado. A idosa, de cabelos grisalhos e expressão triste, veste um casaco marrom. A jovem, de cabelos castanhos longos, tem olhar distante e expressão séria. Ambas transmitem melancolia e desconexão, em meio a um fundo abstrato de cores quentes e frias.
Entre o silêncio e a ausência, um vínculo ferido. Essa imagem traduz o que palavras nem sempre conseguem expressar: o peso do afeto negado, o tempo que desgasta e a distância que nunca foi apenas física. Uma mãe e uma filha, lado a lado - e tão longe.

Amor ausente de mãe e vínculos feridos: uma análise das relações maternas marcadas pela rejeição e pelo silêncio


A relação entre mãe e filha é frequentemente idealizada como um espaço sagrado de amor incondicional, acolhimento e construção de identidade. No entanto, há casos em que esse vínculo se estrutura em bases frágeis, permeadas por rejeição, incompreensão e ausência afetiva. Compreender os caminhos que levam uma mãe a se distanciar emocionalmente da própria filha, mesmo vivendo sob o mesmo teto, requer um olhar profundo e interdisciplinar que envolva elementos da psicanálise, da filosofia existencial e da psicologia do desenvolvimento.


Imagine situações diversas, como a mãe que gera uma filha de forma não planejada; ou a mãe que tem apego excessivo ao corpo e engravida; ou a mãe que não queria parar o trabalho, mas engravidou.... Ou, pior ainda, a mãe que não tem apoio do pai da criança...


Para todos os casos, é comum que se veja um ambiente no qual predominam críticas, silêncios afetivos e conflitos constantes.

É possível perceber a emergência de uma estrutura relacional marcada pela dor e pela repetição transgeracional de traumas. Winnicott (1965) já apontava que, para que uma criança se desenvolva de maneira saudável, ela precisa de uma "mãe suficientemente boa", ou seja, uma figura cuidadora que, mesmo com imperfeições, consiga oferecer segurança emocional, atenção às necessidades básicas e um espaço para que a subjetividade da criança emerja.


Pintura impressionista retrata duas mulheres em um cômodo iluminado pelo pôr do sol. Uma mulher mais jovem está sentada em frente à janela, olhando para a luz do entardecer. A outra, mais velha, senta-se em uma cadeira ao fundo, com expressão séria e distante. O ambiente é preenchido por tons quentes e pinceladas suaves, sugerindo um momento de tensão silenciosa e introspecção emocional.
Duas mulheres, dois silêncios. Uma olha o pôr do sol como quem busca sentido. A outra, sentada, encara a memória como quem não pode mais fugir. Entre elas, o tempo, o afeto ausente, e tudo o que nunca foi dito.

Quando essa "mãe suficientemente boa" (Winnicott, 1965) não acontece, a criança tende a internalizar a ausência de amor como um problema relacionado ao seu próprio valor. Erik Erikson (1963), em sua teoria psicossocial, já alertava para o impacto que falhas nos primeiros estágios da vida podem ter sobre a construção da identidade e da autoestima. A criança, não sendo validada, cresce com um sentimento de inadequação, que pode se acentuar na adolescência - fase marcada por conflitos naturais de autonomia e afirmação - e persistir na vida adulta.


Na filosofia existencial, Simone de Beauvoir (1949) denuncia a forma como muitas mulheres, sem acesso à escolha plena sobre a maternidade, foram historicamente empurradas para o papel de mãe como imposição social e biológica, não como decisão consciente.


Força a maternidade idealizada sobre a mulher pode levar à maternidade vivida com ressentimento, um fardo simbólico que é, muitas vezes, lançado sobre o próprio filho, que passa a ser visto não como uma realização afetiva, mas como obstáculo, peso ou símbolo de fracasso.

A recusa do pai, por exemplo, intensifica a sensação de abandono da mãe e, possivelmente, ativa na criança desde cedo um sentimento de injustiça e desamparo que pode ser projetado sobre a própria filha.


Pintura impressionista de uma jovem mulher sentada em uma cama simples, segurando um bebê nos braços. A mulher tem expressão melancólica e olhar baixo, enquanto o bebê repousa tranquilo. O cenário é íntimo e aquecido por tons dourados e terrosos, evocando sentimentos de silêncio, cuidado e resignação.
Nem toda maternidade nasce da escolha. Às vezes, ela nasce do silêncio, da ausência de opção, da pressão social. Esta imagem retrata o peso da decisão que nunca foi totalmente dela — e o amor que tenta surgir, mesmo quando o desejo não chegou primeiro.

Freud (1917) aponta que a repetição compulsiva é uma tentativa inconsciente de elaboração de traumas não resolvidos. Se a mãe, por exemplo, viveu uma história de rejeição familiar - sendo desprezada ou tratada como inferior por seus próprios pais ou irmãos -, é possível que, ao ter uma filha, projete sobre ela esse mesmo lugar de desvalorização. A filha, então, torna-se "herdeira psíquica" de uma dor que não é sua, mas que é imposta como se fosse. Essa transferência intergeracional de ressentimentos é analisada também por Boris Cyrulnik (2009), que discute como traumas não elaborados pelos pais podem recair sobre os filhos, não apenas por atos explícitos de violência, mas também pela ausência de cuidado, afeto ou reconhecimento.


O gesto reiterado da mãe de negar a presença da filha, minimizar conquistas ou criticar quaisquer atitudes, como se procurasse algo para reclamar, pode ser interpretado como expressão de um narcisismo ferido.

Melanie Klein (1935) aponta que mães que não conseguiram elaborar suas perdas ou frustrações tendem a se relacionar com os filhos de forma ambivalente: amando-os por obrigação ou ideal e, ao mesmo tempo, sentindo raiva inconsciente da dependência que essas crianças representam.


O problema pode se agravar ainda mais quando envolve a família ampliada (para além de pai e mãe). Isso porque, ao reforçar estigmas e debochar das condições da pessoa, essa fmília ampliada atua como um reforço simbólico do desprezo.

Pierre Bourdieu (1979), ao discutir a reprodução social e simbólica, mostra como as dinâmicas familiares podem reforçar lugares de dominação e inferiorização. Quando a criança é tratada como "pobre", "incapaz" ou "peso", ela não apenas incorpora tais rótulos, mas também precisa lutar contra eles como parte de sua constituição psíquica. O desprezo social se entrelaça, então, com o desprezo afetivo.


Pintura impressionista de uma mulher de meia-idade sentada sozinha em uma cadeira, com o cotovelo apoiado na mesa e a cabeça apoiada na mão, em expressão de cansaço e frustração. Ela veste uma blusa azul escura e uma saia marrom-avermelhada. O ambiente tem tons quentes e pinceladas suaves que criam um clima de introspecção e desgaste emocional.
Nem sempre a maternidade vem acompanhada de plenitude. Há mães que carregam sonhos interrompidos, frustrações silenciadas e um cansaço que a sociedade prefere ignorar. Esta imagem retrata a exaustão psíquica de quem deu muito de si - e ainda assim se sente incompleta.

Mesmo diante dessas adversidades, os filhos podem ter suas conquistas, mas nunca terá na casa materna um local amável para ficar. Por isso, vai embora e não volta. Tal movimento pode ser compreendido à luz do conceito de “individuação” desenvolvido por Carl Jung (1954), que se refere ao processo pelo qual o indivíduo se separa simbolicamente das figuras parentais para construir sua identidade. No entanto, esse processo não implica esquecer as feridas do passado, mas sim lidar com elas. Quando essas feridas não são elaboradas, continuam abertas, mesmo que à distância.


O fato é que, com o tempo, a mãe adoece e passa a viver nos limites da sua psiquê, numa condição que, do ponto de vista psíquico, dissolve a consistência do ego. E isso, que pode aparentar uma suavidade nas agressões, é apenas uma máscara.

Os filhos que passam por isso, que chegam a observar a mãe em estado de fragilidade, geralmente se veem em um dilema afetivo: entre o cuidado e a raiva, entre a memória do abandono e a compaixão pelo declínio.


Pintura impressionista de uma mulher idosa sentada em primeiro plano, com expressão triste e abatida, vestindo um xale laranja-avermelhado. Atrás dela, dois filhos adultos, um homem e uma mulher, observam em silêncio, também com semblantes sérios. A cena é iluminada por tons quentes e pinceladas suaves, transmitindo um clima de fragilidade, despedida e conexão silenciosa.
Há um momento em que a mãe deixa de ser apenas a figura forte que sustenta tudo — e se revela como alguém frágil, cansada, humana. Diante dos filhos, o corpo já não resiste, e a memória se desfaz em silêncio. Essa imagem retrata a delicadeza do fim, o cansaço da trajetória e o olhar dos que ainda tentam entender o que ficou por dizer.

Esse dilema é existencial. Hannah Arendt (1958), ao refletir sobre a condição humana, afirma que o perdão é uma das únicas formas possíveis de interromper o ciclo da vingança e da repetição. No entanto, o perdão, como lembra Nietzsche (1887), não pode ser imposto - é um ato de potência interior, não de submissão.


Os filhos carregam o direito legítimo de não compreender o que aconteceu. Eles tem o direito de não desculpar, se não quiserem. Mas também tem a liberdade de transformar a dor herdada em consciência, o abandono em reflexão, a ausência em presença, ainda que apenas em sua própria vida, como forma de romper com um ciclo.

Ao reconhecer que o amor materno nem sempre está garantido pela biologia ou pelo convívio, é possível desromantizar a maternidade e, com isso, libertar aqueles que cresceram em lares afetivamente negligentes da culpa de não terem sido amados como imaginavam merecer. É também um convite à autonomia emocional: compreender que, mesmo marcados por dores profundas, podemos ressignificar nossas histórias.



Referências bibliográficas


Arendt, H. (1958). A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária.


Beauvoir, S. de. (1949). O Segundo Sexo. São Paulo: Nova Fronteira.


Bourdieu, P. (1979). A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp.


Cyrulnik, B. (2009). Corpo e Alma: uma obra de resiliência. São Paulo: Martins Fontes.


Erikson, E. (1963). Infância e Sociedade. Rio de Janeiro: Zahar.


Freud, S. (1917). Luto e Melancolia. In: Obras Completas, Vol. XIV. São Paulo: Companhia das Letras.


Jung, C. G. (1954). O Desenvolvimento da Personalidade. Petrópolis: Vozes.


Klein, M. (1935). A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego. In: Contribuições à Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.


Nietzsche, F. (1887). A Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras.


Winnicott, D. W. (1965). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago.



コメント


bottom of page