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O moralista que mora com a mãe: uma análise psicanalítica do extremismo atual

Atualizado: 1 de mai.

Sabe aquela pessoa que é extremistas politicamente, como acontece hoje no Brasil, nos EUA e em outras partes do mundo; que tem visivelmente problemas psicanalíticos, mas que desdenham do processo terapêutico? Aquelas que geralmente culpabilizam quem tá ao redor por tudo, acusam quem tá ao redor de vitimista, acreditam demasiadamente na meritocracia, não aceitam com facilidade a visão do outro (sequer dá a palavra ou interrompe muito quando o outro fala), reclama o tempo inteiro de tudo do mundo e se escondem atrás do um discurso de que são pessoas do bem, supostamente éticas, corretas e ilibadas? Então, isso lhe lembra alguém? Então, vamos começar essa análise. Leia com atenção.


Figura masculina de costas cobrindo o corpo com a bandeira do Brasil, em pintura pós-moderna com fundo abstrato, simbolizando identidade política rígida e ocultamento emocional.
Na imagem de abertura deste texto, um homem encobre o próprio corpo com a bandeira do Brasil, de costas e com o rosto oculto. É uma metáfora visual para a identidade construída a partir de ideais nacionalistas rígidos, que muitas vezes escondem feridas psíquicas não elaboradas. O texto que você vai ler propõe uma reflexão profunda sobre o extremismo político e moral contemporâneo sob a ótica da psicanálise - abordando temas como repressão emocional, projeção, negação da escuta, meritocracia e rigidez narcísica.

A Ilusão do Bem: uma leitura psicanalítica do extremismo político e moral contemporâneo


Temos atualmente sujeitos em ruínas em busca de certezas, mas não passam de meros sujeitos inseguros em busca de identidade. O fato é que vivemos um tempo de polarizações intensas, em que posições políticas rígidas se alastram como formas de identidade total.


No Brasil e nos Estados Unidos, por exemplo, discursos moralistas e extremistas ganham força sob o manto de valores éticos e religiosos, com sujeitos que se apresentam como "defensores da família", "cidadãos de bem", "trabalhadores de mérito" e "vítimas da corrupção alheia". Mas o que está em jogo nessa rigidez? O que faz com que tantos indivíduos neguem a escuta, rejeitem a diferença e usem a moral como instrumento de violência simbólica?


A psicanálise oferece chaves preciosas para compreender esse fenômeno. Desde Freud, sabemos que o sujeito é constituído pela falta - ele não é uno, coeso, pleno. Ele nasce imerso em pulsões contraditórias, precisando aprender a simbolizar, a conter, a negociar com o mundo. Como Freud nos mostra em O Mal-Estar na Civilização (1930), essa negociação entre os impulsos internos e as exigências sociais gera angústia, recalque e neurose. Ou seja, a dor psíquica é constitutiva da vida em sociedade.


O problema surge quando o sujeito não suporta essa dor. Em vez de elaborar suas contradições, projeta-as para fora, sobre o outro. O diferente (como o pobre, o negro, o LGBTQIA+, o ateu, o comunista, o feminista etc.) passa a carregar o que o sujeito não suporta em si mesmo. Surge, então, o desejo de punição, de correção, de exclusão. É como se, eliminando o outro, o sujeito se livrasse de sua própria angústia.


Homem sentado com as mãos no rosto em pintura expressionista, usando pinceladas intensas e cores quentes e sombrias para transmitir dor interior.
A dor que se esconde entre os dedos: uma representação expressionista da angústia contida, típica de sujeitos que não suportam suas próprias emoções.


Projeção, formação reativa e o delírio de pureza


Melanie Klein, por exemplo, aprofunda essa leitura ao mostrar como, nos estados mais primitivos da mente, o sujeito divide o mundo entre "bom" e "mau", projetando no outro tudo o que é indesejável. Essa cisão típica da posição esquizoparanoide impede a integração da ambivalência (a capacidade de perceber que há bem e mal em todas as partes). O extremista moral age como uma criança psíquica: ele precisa acreditar que é puro e que o outro é o problema, senão perde totalmente o controle de si e do que acreditar em si mesmo, como identidade.


Por isso, o discurso extremista está carregado de formações reativas (conceito freudiano que descreve quando o sujeito expressa, de forma exagerada, o oposto do que realmente sente). Assim, aquele que vocifera contra “a imoralidade dos outros” frequentemente está tentando encobrir seus próprios desejos recalcados. A homofobia violenta, por exemplo, muitas vezes encobre uma sexualidade que o sujeito não consegue reconhecer em si.


É o típico caso do homossexual não assumido que agride um homossexual assumido justamente pelo outro ter tido essa coragem de se expressar. O ataque ao outro, portanto, é uma defesa contra o próprio inconsciente e não aceitação, uma covardia que se espalha por outros comportamentos desse próprio sujeito violento quando o espelho lhe aparece.

Essa estrutura se radicaliza em tempos de insegurança social, econômica e simbólica. Quando o mundo parece incerto, ameaçador, o sujeito busca uma "ilha de sentido". O problema fica ainda pior quando grupos políticos ou religiosos rígidos oferecem essa tal ilha:

  • fornecem respostas prontas (com vídeo curtos lacradores);

  • um inimigo comum (como um político adversário); ou

  • uma missão moral (combatem as bandeiras sociais chamando de mimimi, por exemplo).


Lacan chamaria isso de identificação ao significante-mestre, ou seja, o sujeito encontra no líder carismático ou no discurso autoritário uma forma de organizar o seu próprio caos interno. Mas essa identificação é frágil: qualquer contradição fere a ilusão de completude, por isso o contraditório é violentamente recusado. O extremista covardemente xinga, bate, grita, esperneia, tudo para não se ver no espelho e perceber que o que ele reclama existe muito mais profudamente nele mesmo.



Figura humana com cabeça oca de pedra em paisagem desértica, simbolizando o esvaziamento psíquico em estilo surrealista.
Quando o vazio interno pesa mais que a realidade: imagem surrealista que traduz o colapso psíquico de quem tenta silenciar o próprio abismo


A meritocracia como fantasia narcísica


A crença irrestrita na meritocracia, por exemplo, é um dos pilares psíquicos do sujeito extremista contemporâneo. Em vez de reconhecer os condicionantes históricos, sociais e afetivos que estruturam a vida de cada um, o meritocrata precisa acreditar que venceu por esforço próprio. E julga todo mundo que questiona isso como "mimimi". Isso reforça apenas sua autoimagem idealizada por si mesmo e o exime da culpa diante das desigualdades. Ele diz que não é culpa dele e que o outro que não se esforçou o suficiente, enquanto não percebe ou não quer perceber que isso é sim uma atitude altamente violenta, perversa e narcisista.


Sim, a psicanálise vê nesse discurso um tipo clássico de defesa narcísica. O sujeito projeta um "Ideal do Eu" (segundo estudos de Lacan), uma imagem de si que é perfeita, vitoriosa e justa (mesmo que, apenas para não parecer um lunático, ela fale que não é nada disso; mas, na verdade, internamente, ele pensa o contrário).


Aquele que não corresponde a esse ideal é desqualificado: é vagabundo, vitimista, “mimizento”. Ao negar a estrutura, o outro se torna culpado por sua própria dor. É o retorno perverso da moral calvinista, agora sob roupagem neoliberal.


Além disso, a meritocracia produz um paradoxo: exige do sujeito sucesso absoluto, mas não oferece espaço para fracasso ou fragilidade. Isso gera angústia crônica e projeção agressiva. Por que tantos sujeitos passam a vida reclamando da “lacração”, dos “esquerdistas”, das “minorias barulhentas”? Porque esses grupos representam o que ele mesmo reprimiu - o grito por reconhecimento, a vulnerabilidade, a sensibilidade. Por isso, em boa parte, esses sujeitos continuam sem cortar o cordão umbilical, porque, na verdade, internamente, se sentem não reconhecidos e vulneráveis, mesmo que busquem parecer o contrário até no discurso. É por causa disso que o outro incomoda, por não ser realmente “vitimista”, mas sim por ser o espelho daquilo que o sujeito não soube simbolizar.



Colagem dadaísta com fragmentos de texto em português, representando crítica social e conflitos internos de identidade e moral.
Palavras que ferem, fragmentos que acusam: um mergulho no inconsciente político e moral de quem projeta suas fraturas no outro


Quando o sujeito diz que não precisa de terapia, mas na realidade está em pânico de ter autoconhecimento


Num cenário como esse, não surpreende que o processo terapêutico seja tão desdenhado, até xingado quando alguém recomenda a tais sujeitos. Fazer terapia exige o oposto do que o sujeito extremista está disposto a fazer:

  • aceitar a falta em si,

  • reconhecer a ambivalência em si,

  • identificar em si os conflitos internos, sem se fechar.


A análise convida à suspensão do julgamento, à escuta, à simbolização do inconsciente. Para o sujeito que se diz cidadão do bem, isso é uma ameaça direta à sua identidade imaginária.


Freud já alertava que o trabalho analítico implica uma perda: perda de ilusões, de certezas, de fantasias infantis. A ética psicanalítica é a ética da verdade subjetiva. Isso é insuportável para quem construiu sua vida sobre o recalque e a idealização. Lacan, por sua vez, diz que o analista não é alguém que consola ou aconselha, mas alguém que sustenta o vazio, o não-saber, o desejo. E isso é profundamente subversivo.


Assim, muitos preferem permanecer no "circuito do gozo": reclamar da política, culpar os outros, manter-se indignado, atacar quem pensa diferente etc. É um gozo amargo, mas é um gozo, uma forma de sustentar o sujeito no lugar em que ele não precisa se confrontar com seu inconsciente. É, verdadeiramente, uma ação covarde. A análise desmonta esse teatro. Por isso, eles não querem.



Figura masculina abstrata em estilo cubista com formas geométricas e tons terrosos, sugerindo introspecção e conflito interior.
Fragmentado por dentro, rígido por fora: um retrato cubista da estrutura psíquica do sujeito que julga tudo, mas não se vê


O outro como ameaça e a ética da diferença


Segundo Jung, todos temos sombras. Isso é comum, não coisa de gente doida ou anormal. Mas vamos explicar melhor para não haver sequer desentendimento.


Quando o sujeito se recusa a lidar com sua sombra, o outro se torna ameaça. Como dizia Jung, "tudo aquilo que nos irrita nos outros pode nos levar a um entendimento de nós mesmos". Mas isso exige humildade psíquica. E o extremismo é, acima de tudo, um narcisismo ferido.


A ética da psicanálise é, portanto, a ética da diferença. Diferente da moral, que impõe normas externas, a ética analítica sustenta a pergunta: “o que você quer?” e ajuda o sujeito a encontrar sua resposta singular, sem esmagar o outro. Num tempo em que todos querem salvar, curar, corrigir ou converter o outro, a escuta torna-se ato político. É por isso, por precisar de autodeclarar vulnerável, os extremistas não conseguem reagir diferente.



Homem de costas com as mãos no rosto em pintura fauvista vibrante, com pinceladas expressivas em vermelho, azul, amarelo e laranja.
Cores selvagens para emoções reprimidas: quando o discurso moralista explode em silêncio interior.


O mal-estar não é do outro, é nosso. Essa é a parte mais difícil de admitir


A radicalização moral e política não é um problema do outro, é o sintoma de um mal-estar estrutural. Somos todos sujeitos marcados pela falta, pela ambivalência, pela incompletude. Quando essa estrutura é negada, ela retorna na forma de discurso de ódio, de agressão, de rigidez.


O desafio do nosso tempo é suportar o abismo do próprio desejo. É aceitar que ser ético não é ser perfeito, mas ser consciente do próprio inconsciente. É reconhecer que a paz social não virá de discursos prontos, mas da difícil tarefa de escutar o outro. E, sobretudo, de escutar a si mesmo.


"A minha alucinação é suportar o dia a dia E meu delírio é a experiência com coisas reais" (Belchior, Alucianção)

No fim, o sujeito extremista, moralista, que grita virtudes públicas enquanto vive descompassos íntimos, é, muitas vezes, o mesmo que - já com mais de quarenta anos - mora sob o teto da mãe, incapaz de sustentar emocionalmente uma vida autônoma. É o mesmo que também esmaga afetos com sarcasmo, por exemplo, anula a esposa com superioridade silenciosa, exige que os filhos sejam soldados da sua moral doentia. É o mesmo que reprime o choro, ridiculariza a dor, e, diante de qualquer vulnerabilidade alheia, ergue a voz não para proteger, mas para esmagar.


Esse sujeito não escuta; ele julga. Não educa; adestra. E quando aqueles que estão ao seu redor, cansados da mordaça, rebelam-se e deixam de temê-lo, ele desmorona. E incapaz de lidar com o abandono, com a perda do controle ou com o confronto de seus limites, ele busca refúgio não no autoconhecimento ou na terapia, mas sim no retorno à zona de conforto emocional, como, por exemplo, nos braços da ex-parceira que um dia foi subjugada e que talvez ainda o acolha por compaixão ou dependência, ou, mais comumente, o colo da mãe, que o amará apesar de tudo, inclusive apesar do que ele se recusa a ser.

O trágico não está no fracasso do outro em obedecê-lo, mas no fracasso dele mesmo em se tornar sujeito. Porque ser sujeito exige assumir a própria falta, responsabilizar-se pelo próprio desejo, reconhecer os limites do próprio Eu - e nada disso se aprende com gritos, dogmas ou castigos. Aprende-se com escuta, com humildade, com a coragem de atravessar o espelho e encarar o que há por trás da máscara do homem de bem.


O verdadeiro adulto não é aquele que comanda, mas o que suporta perder o controle sem perder a dignidade.

Isso porque a ética - a verdadeira - começa quando o outro deixa de ser inimigo e passa a ser reconhecido como um reflexo da própria humanidade. E isso, para muitos, ainda é insuportável.



Figura masculina abstrata em estilo cubista com formas geométricas e tons terrosos, sugerindo introspecção e conflito interior.
Fragmentado por dentro, rígido por fora: um retrato cubista da estrutura psíquica do sujeito que julga tudo, mas não se vê.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.


FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.


JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Autobiografia redigida por Aniela Jaffé; tradução de Dora Ferreira da Silva. São Paulo: Nova Fronteira, 2006.


KLEIN, Melanie. Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Imago, 1991.


KLEIN, Melanie. O amor, a culpa e a reparação. Tradução de Renato Zwick. São Paulo: Martins Fontes, 1991.


LACAN, Jacques. O seminário: livro 7: A ética da psicanálise (1959-1960). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.


LACAN, Jacques. O seminário: livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.


LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro, Sérgio Miller e outros. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.


ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2011.



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