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O Caminho de Santiago e o peso invisível: por que carregamos tanto e precisamos deixar para trás?

Vivemos em uma era na qual o valor de uma pessoa parece ser medido pelo peso de sua bagagem material. A sociedade contemporânea, moldada pelo consumo e pela vaidade, nos ensina a acumular, a possuir mais do que precisamos, como se os bens que carregamos fossem uma extensão de nossa própria identidade. Mas, no fundo, o que essas posses realmente significam? Li um texto de Murilo Moreno, sobre o excesso de bagagem que carregamos na vida, e isso me inspirou nesse texto. Fico pensando: em que momento passamos a confundir quantidade com qualidade, excesso com segurança, acúmulo com realização? No Caminho de Santiago, uma lição amarga se revela: o que julgamos essencial muitas vezes se torna apenas mais um fardo a ser deixado para trás. Nesse percurso, o ato de abandonar objetos não é apenas uma decisão prática, mas um gesto simbólico de confronto com a superficialidade da vida moderna. O que realmente importa não pode ser pesado ou contado. E a verdadeira liberdade não reside naquilo que possuímos, mas na coragem de nos desapegar do desnecessário. Escrevi esse texto para abordar o paradoxo de uma sociedade que idolatra o ter, ao mesmo tempo em que esquece a essência do ser, questionando até que ponto estamos dispostos a nos libertar das amarras materiais que nós mesmos criamos.


Mulher de pele escura e cabelos ondulados caminhando em uma trilha de terra no Caminho de Santiago. Ela abandona roupas e itens pelo caminho, enquanto a paisagem serena ao fundo, com colinas e o pôr do sol, destaca a jornada de desapego material e transformação espiritual.
Símbolo do desapego e da busca por leveza, tanto física quanto espiritual, à medida que avança rumo ao desconhecido

No Caminho de Santiago, uma tradição peregrina se desdobra não apenas em direção a um destino físico, mas em um processo simbólico de desapego.


Entre os viajantes, corre a máxima de que a quantidade de pertences carregados reflete o nível de orgulho e autossuficiência.

Ao longo da jornada, muitos percebem que, na tentativa de prever todas as necessidades, trazem consigo excessos que logo se revelam fardos, sendo abandonados à beira da estrada. Assim, ao liberarem seus pesos físicos, os caminhantes experienciam, paradoxalmente, uma leveza interior, abrindo espaço para a transformação que uma experiência como essa pode proporcionar.


Essa relação entre o peso literal da mochila e o peso figurativo da vaidade encontra respaldo na psicologia e na filosofia. Sigmund Freud (2006) abordou, em suas teorias, o conceito de "superego", responsável por internalizar normas sociais e vaidades, muitas vezes criando uma necessidade de acumular e exibir bens materiais como símbolo de status.


O Caminho de Santiago, por exemplo, exemplifica que essa vaidade material pode ser ilusória. O desejo de carregar mais do que é necessário pode refletir um medo inconsciente de desproteção, um sintoma da insegurança humana frente ao imprevisível.

Ao longo da caminhada, o ato de se desapegar de itens se assemelha a um processo de "purificação" psicológica, algo que Carl Jung (1990) identificaria como parte da jornada arquetípica do herói.


No percurso de autodescoberta, o indivíduo se vê diante de suas próprias sombras, confrontando os excessos que antes pareciam essenciais, mas que agora revelam sua futilidade.

Para Jung, a verdadeira integração do "Self" ocorre quando o sujeito abandona o que não é essencial, revelando a essência interior. Além disso, filósofos existencialistas como Jean-Paul Sartre também ofereciam reflexões pertinentes sobre essa questão. Sartre, em sua obra "O Ser e o Nada", destacou a liberdade que surge quando nos desapegamos dos objetos e das definições que o mundo tenta impor. Ele afirmava que o ser humano está "condenado à liberdade" (Sartre, 1997).


Essa liberdade, paradoxalmente, muitas vezes assusta, levando a gente a buscar refúgio em bens materiais. Mas ao longo do Caminho de Santiago, a percepção da irrelevância de tais objetos emerge.


Por isso, o peregrino é, de certa forma, forçado a se confrontar com sua própria liberdade - de carregar apenas o que realmente importa.

Ainda que o apego a coisas materiais seja uma característica da nossa era de consumo, estudiosos do comportamento humano, como Erich Fromm (2013), afirmam, por exemplo:


se vacilarmos, o mundo contemporâneo faz a gente deixar que o "ter" acabe dominando o "ser".

O desejo de possuir bens se torna um obstáculo ao crescimento pessoal. Fromm argumenta ainda algo muito, mas muito importante:


o verdadeiro desenvolvimento humano ocorre na renúncia ao materialismo em favor do autoconhecimento e das experiências.

Essa visão é corroborada no Caminho de Santiago, em que a experiência da peregrinação ensina que o acúmulo de bens não se traduz em plenitude, e sim em sobrecarga.



Mulher andando de bicicleta em uma estrada rodeada de árvores com folhas de outono. Ela carrega uma mochila nas costas, sugerindo uma jornada leve e introspectiva, com o vento movendo seus cabelos.
Um momento de liberdade e contemplação, destacando a beleza das pequenas viagens e o alívio de levar apenas o essencial.


Ao refletirmos sobre a ideia de que, durante uma jornada, acumulamos objetos desnecessários, podemos perceber que isso se relaciona com o medo de nos desprendermos de quem somos e do que achamos que precisamos.


Ao longo de viagens físicas ou existenciais, somos convidados a deixar para trás não apenas roupas ou objetos, mas também expectativas e antigas versões de nós mesmos. Apenas assim, podemos estar abertos ao novo - ao que ainda há para conhecer e usufruir - permitindo que o futuro nos transforme sem que sejamos prisioneiros do passado material.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.


FROMM, Erich. Ter ou Ser? Rio de Janeiro: Zahar, 2013.


JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.


SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. São Paulo: Vozes, 1997.

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