Estamos ficando burros com a IA? Uma possível outra verdade por trás do declínio cognitivo
- W. Gabriel de Oliveira
- 20 de out. de 2024
- 4 min de leitura

A análise sobre a relação entre o uso crescente de tecnologias digitais e o declínio cognitivo ecoa preocupações legítimas, mas carece de uma fundamentação científica sólida (meu sonho, juro - inclusive, estou buscando fazer isso também) e de uma visão mais abrangente sobre os impactos da inteligência artificial (IA) e da digitalização no comportamento humano. Embora seja inegável que o imediatismo e a conveniência trazidos pelas tecnologias tenham transformado a maneira como processamos informações, a tese de que estamos nos tornando "organismos tolos" ignora os aspectos positivos e as complexidades do cenário atual.
Sobre o declínio cognitivo ou adaptação cerebral
Ao afirmarmos que a IA nos está "atrofiando o intelecto" (inclusive, tese que eu levo como hipótese também, mas que ainda não consegui comprovar, mesmo com parceria da PPGE com a PPGCM para testes de eletroencefalograma), é preciso ter cuidado com generalizações. O neurocientista Stanislas Dehaene (2020) ressalta que o cérebro humano é altamente plástico, capaz de se adaptar a novas demandas. Se por um lado podemos observar uma menor habilidade manual na escrita, como mencionado, por outro lado estamos desenvolvendo novas competências cognitivas, como a habilidade de navegar, filtrar e sintetizar grandes volumes de dados, algo que simplesmente não era necessário em eras pré-digitais.
Além disso, estudos no campo da psicologia cognitiva, como os de Daniel Willingham (2017), mostram que a facilidade proporcionada pela tecnologia não necessariamente leva ao enfraquecimento do intelecto, mas a uma redistribuição das capacidades cognitivas.
Isso significa que, enquanto certas habilidades se tornam menos utilizadas, outras, como a capacidade de tomar decisões rápidas com base em múltiplas fontes de informação, emergem como mais prevalentes e, em muitos casos, vantajosas.
Preguiça patológica ou novos desafios?
A "preguiça patológica de pensar" não é um fenômeno exclusivamente moderno. O filósofo Martin Heidegger (1954), ao analisar o impacto da técnica, já argumentava que a simplificação do mundo pela tecnologia pode nos afastar de uma reflexão mais profunda sobre a existência. No entanto, o próprio Heidegger reconhece que a técnica não é apenas um inimigo da cognição, mas também um potencial aliado na ampliação de horizontes (isso também me lembra reflexões de Paulo Freire).
Vivemos em uma época em que as ferramentas digitais oferecem vastos recursos para a aprendizagem, a criatividade e a inovação. O problema não está nas ferramentas em si, mas na forma como as utilizamos. Aqui entra uma respeitosa e construtiva crítica:
a educação e a sociedade, em grande parte, ainda não adaptaram suas estruturas para garantir que as pessoas possam utilizar essas ferramentas de maneira crítica e produtiva, em vez de se tornarem meros consumidores passivos de conteúdo ultraprocessado.
Escrever, ditar, gravar: diferentes formas de pensar?
Concordo, existe de fato uma distinção importante entre escrever à mão e utilizar meios digitais. A pesquisa de Virginia Berninger (2012) demonstra que o ato de escrever à mão envolve uma complexa interação entre o cérebro e o corpo, resultando em benefícios para a memória e o pensamento crítico. Eu acho isso massa - inclusive, isso me fez testar várias vezes comigo mesmo e validar a teoria. No entanto, isso não significa que ditar ou gravar sejam menos válidos. Essas são novas formas de interação com o conhecimento que refletem os avanços tecnológicos. E cabe à educação adaptá-las de modo a garantir o desenvolvimento pleno das capacidades cognitivas dos indivíduos.
Entendo que, comparando o consumo de informações ao de comida em pílulas (como os fast foods), é interessante, mas penso que possa ser simplista (sem demérito, claro, apenas uma aposta que essa análise pode ser mais profunda, vinda de quem veio). É que o excesso de conteúdo superficial e descontextualizado, como ocorre em redes sociais, realmente pode levar a uma "dieta intelectual" pobre, como sugere o estudo de Nicholas Carr (2010), que defende que a internet está nos tornando menos profundos em nossos pensamentos. No entanto, já existem pesquisas mais recentes (cof cof cof, de 2011), como as de Betsy Sparrow (2011), que indicam que a internet também serve como uma espécie de "memória externa", na qual armazenamos e acessamos informações de maneira eficiente, permitindo-nos liberar recursos cognitivos para outras atividades mais complexas.
A visão de que seremos "organismos tolos" (na minha visão, claro, como apenas um colega numa mesa de bar virtual - inclusive, boa ideia no Moleskine Gastrobar ouvindo blues), ignora o papel essencial da educação crítica.
Paulo Freire (1968) já alertava que a educação bancária, em que o aluno é um receptor passivo de informações, resulta em seres humanos alienados. No entanto, o problema não está na tecnologia em si, mas na forma como ela é utilizada. As ferramentas digitais, quando usadas de maneira crítica, podem ser poderosas aliadas na promoção do pensamento reflexivo, analítico e criativo.
Na minha visão (depois de um bom drink no Moleskine Gastrobar - olha a dica =D), a questão que deveríamos nos fazer não é se a IA nos deixará burros, mas como podemos nos preparar, enquanto sociedade, para enfrentar os desafios que essas novas tecnologias impõem à nossa capacidade de raciocínio. A resposta está na combinação de uma educação crítica, que valorize o papel ativo do sujeito no processo de aprendizagem, com o uso consciente e estratégico das ferramentas digitais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERNINGER, Virginia. Evidence-Based, Developmentally Appropriate Writing Skills K-5: Teaching the Orthographic Loop of Working Memory to Write Letters So Developing Writers Can Spell Words and Express Ideas. National Association of School Psychologists, 2012.
CARR, Nicholas. The Shallows: What the Internet is Doing to Our Brains. New York: W. W. Norton & Company, 2010.
DEHAENE, Stanislas. How We Learn: Why Brains Learn Better Than Any Machine… for Now. Penguin, 2020.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
SPARROW, Betsy, Liu, Jenny, and Wegner, Daniel M. Google Effects on Memory: Cognitive Consequences of Having Information at Our Fingertips. Science, 2011.
WILLINGHAM, Daniel. The Reading Mind: A Cognitive Approach to Understanding How the Mind Reads. Jossey-Bass, 2017.
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