Educação digital: promessas ambiciosas, realidades amargas - o descompasso entre tecnologia e desvalorização docente
- Louise Kataryne Freitas de Oliveira
- 30 de ago. de 2024
- 9 min de leitura
Atualizado: 25 de set. de 2024
Enquanto a Política Nacional de Educação Digital promete uma revolução no ensino, professores enfrentam desvalorização, cortes salariais e falta de apoio para se adaptar à nova realidade tecnológica. O cenário revela um abismo crescente entre o avanço digital e as condições reais das instituições de ensino.
Autor: Louise Kataryne Freitas de Oliveira
30 de agosto de 2024

A Educação em xeque: o desafio da Inteligência Artificial nas salas de aula para além da tecnologia
O avanço da Inteligência Artificial (IA) no mundo aconteceu de forma avassaladora e acelerada. Em um cenário pós-pandemia, no qual a internet invadiu as salas de aula por imposição - não por escolha -, professores, alunos e instituições de ensino se viram forçados a adaptar-se a uma nova realidade digital para a qual ninguém estava verdadeiramente preparado. Entre videochamadas improvisadas e plataformas online que mais atrapalhavam do que ajudavam, o ensino sofreu um abalo profundo, expondo a falta de preparo técnico e pedagógico de todos os envolvidos.
Agora, passado o caos inicial, a ferida parece estar aberta e longe de ser totalmente curada e cicatrizada. O desafio que se apresenta é ainda maior: acompanhar essa nova disrupção que a IA impõe ao processo de ensino e aprendizagem. A tecnologia avança, transformando profundamente o modo como adquirimos e transmitimos conhecimento, mas o mesmo não se pode dizer das instituições e dos profissionais que deveriam liderar essa mudança. Enquanto a IA promete revolucionar a educação, a realidade dentro das salas de aula aponta para um cenário preocupante de descompasso. Escolas estão despreparadas; alunos anseiam por inovações que seus educadores não conseguem oferecer; professores exaustos, sobrecarregados e com salários diminuídos depois da reforma trabalhista encaram um dilema de adaptação com ferramentas que mal entendem.
O problema não está apenas na tecnologia, mas na falta de um planejamento robusto e estratégico para integrá-la de forma eficaz no cotidiano escolar. Com isso, o avanço da IA, que poderia ser um aliado poderoso na construção de uma educação mais dinâmica e inclusiva, acaba por destacar as falhas estruturais do sistema educacional brasileiro. O resultado é uma corrida contra o tempo, na qual o ensino se vê às voltas com desafios que vão além da sala de aula: eles atingem o cerne de como educamos, aprendemos e preparamos as futuras gerações para um mundo em constante transformação.
Alunos otimistas, professores despreparados? A realidade da Inteligência Artificial na educação superior particular do Ceará
Uma pesquisa apresentada por pesquisadores do Laboratório Multimeios da Universidade Federal do Ceará em dois importantes eventos acadêmicos (28° CIAED - Congresso Internacional ABED de Educação a Distância e X CONEDU - Congresso Nacional de Educação), realizados em 2023 e 2024 respectivamente - lançou luz sobre a percepção dos estudantes do ensino superior particular do Ceará em relação ao uso da Inteligência Artificial (IA) na educação. Com 541 respostas de estudantes de diversos cursos, os dados evidenciam um cenário de otimismo entre os jovens, mas um alerta máximo quanto à necessidade urgente de formação dos professores.
De acordo com a pesquisa, 74,3% dos estudantes afirmaram nunca terem usado IA em atividades educacionais, enquanto 25,7% relataram algum uso, principalmente para pesquisas, escrita de redações e exercícios de revisão. No entanto, o dado mais contundente está na percepção sobre os professores: uma grande maioria dos estudantes acredita que os docentes não estão preparados para a chegada da IA nas salas de aula. Isso gera um descompasso, pois enquanto 78,2% dos estudantes acreditam que a IA pode melhorar o desempenho acadêmico, com 48,4% considerando a tecnologia "muito útil", os professores continuam presos a metodologias tradicionais e desconhecem o potencial das novas ferramentas.
Os estudantes mostram-se prontos e ansiosos para abraçar as inovações tecnológicas, com 69,5% afirmando que a IA poderia, em algum nível, até substituir os professores no futuro - uma afirmação que carrega um forte tom de crítica à atual formação docente. Eles também destacaram preocupações como o uso inadequado da tecnologia, que pode gerar dependência ou plágio, mas, mesmo assim, veem a IA como um aliado indispensável para a educação do futuro.
Esses números revelam mais do que uma mera estatística: eles apontam para uma profunda desconexão entre o que a nova geração espera da educação e o que está sendo oferecido. Enquanto alunos estão cada vez mais dispostos a usar a IA como ferramenta de aprendizagem, a falta de preparo e formação dos professores ameaça transformar uma revolução tecnológica em um desastre pedagógico. É um sinal de alerta que não pode ser ignorado, pois a resistência ou a incapacidade de adaptação dos educadores pode estagnar o avanço educacional em um momento em que a inovação não é uma escolha, mas uma necessidade.
Professores universitários em crise: falta de apoio e formação ameaçam a adaptação à Inteligência Artificial
Em outra pesquisa alarmante conduzida por pesquisadores do Laboratório Multimeios da Universidade Federal do Ceará e apresentada nos Encontros Universitários da UFC, em 2023, foram entrevistados 161 professores de instituições de ensino superior particular do Ceará. A pesquisa revela um quadro crítico: embora muitos docentes reconheçam o potencial da Inteligência Artificial (IA) na educação, há um consenso entre eles sobre a falta de preparação e apoio para integrar essas tecnologias em sala de aula.
De acordo com os dados, apenas uma pequena parcela dos professores se sente confortável com o uso de IA. Somente 39,1% admitem que conhecem a tecnologia, mas não a utilizam de maneira integrada ao ensino. A maior parte dos entrevistados expressou preocupação com a falta de recursos financeiros e o escasso apoio institucional para capacitação. As instituições particulares, em sua maioria, não oferecem suporte adequado, deixando os professores desamparados diante de uma revolução educacional que exige não apenas vontade, mas também preparo e infraestrutura.
Os números são claros: mais de 70% dos professores acreditam que a IA pode ser uma ferramenta poderosa para a educação, mas 64,5% destacam que não há incentivo ou programas de capacitação oferecidos pelas faculdades. A realidade é ainda mais cruel quando se considera que muitos desses professores trabalham em condições precarizadas, com contratos frágeis e insegurança sobre a manutenção de seus empregos de um semestre para o outro. Esse cenário desmotiva qualquer investimento pessoal em formação contínua, já que o custo muitas vezes recai sobre o próprio professor, que, pressionado pela incerteza, acaba postergando ou abandonando a busca por atualização.
A pesquisa também destacou que o desconhecimento sobre metodologias inovadoras é um dos grandes entraves. Muitos docentes dominam apenas as abordagens clássicas de ensino e não sabem como adaptar suas práticas para incluir a IA de maneira eficaz. Esse desconhecimento, somado à falta de incentivo e recursos, coloca em xeque a capacidade dos professores de acompanhar o ritmo frenético das inovações tecnológicas que estão invadindo as salas de aula.
A crise é evidente: professores que deveriam ser protagonistas na transformação do ensino se veem isolados, sem o apoio necessário para se adaptar à nova realidade digital. O resultado é uma educação estagnada, que não consegue se beneficiar plenamente das oportunidades oferecidas pela IA. Esse descompasso não apenas frustra as expectativas dos alunos, como também mina a motivação dos docentes, criando um ciclo vicioso de desatualização e desamparo. Enquanto a tecnologia avança, os professores - a base do sistema educacional - continuam presos a um passado que insiste em se perpetuar, comprometendo o futuro da educação no Brasil.
A crise da docência superior privada: insegurança e desvalorização após a reforma trabalhista prejudica avanços
A situação dos professores do ensino superior privado no Brasil piorou drasticamente após a Reforma Trabalhista de 2017, que abriu caminho para demissões em massa e novas contratações com salários muito mais baixos. Instituições como a Estácio de Sá demitiram cerca de 1.200 professores logo após a aprovação da reforma, enquanto outras como a Laureate e a Universidade Metodista de São Paulo seguiram a mesma estratégia, com centenas de dispensas, é o que mostram pesquisas realizadas por instituições como Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A justificativa? Reduzir custos aproveitando as novas regras que flexibilizam as contratações, inclusive com jornadas intermitentes e contratos temporários, desprovidos de estabilidade e de garantias trabalhistas que eram padrão até então. Os estudos realizados por pesquisadores da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), intitulado "Reforma trabalhista e trabalho docente no Ensino Superior privado no Brasil", publicado em 2022, dá um alarde a esta realidade que acabou de perpetuando entre outras IES.
Para os professores, esse cenário criou uma instabilidade laboral alarmante. Sem a certeza de manter seus postos de trabalho de um semestre para o outro, muitos docentes se veem obrigados a acumular empregos em diversas instituições para garantir uma renda que, mesmo assim, não é suficiente. É o que reforça a professora Norma Patricia Araujo de Athayde, professora universitária em Fortaleza-CE e pós-graduada em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará-UFC:
"Essa constante revolução tecnológica nos obriga a nos atualizarmos sempre, quase todos os dias, senão perderemos sempre para os famosos celulares em sala de aula. Temos que ser mais atraentes que os celulares dos alunos. Mas precisamos de apoio para nos atualizarmos com tanta rapidez e eficácia. Infelizmente, poucas são as IES do Brasil que tem programas de capacitação docente. Particularmente, trabalho em uma que se preocupa com isso e oferta tais capacitações. Mas tenho inúmeros colegas professores que precisam bancar a própria atualização, pelo bem da nossa profissão e da qualidade de ensino, mesmo atualmente ganhando pouco para isso", relata Profa. Mestre Norma Patricia Araujo de Athayde.
A Federação dos Professores do Estado de São Paulo, por exemplo, destacou que o valor da hora-aula caiu drasticamente após a reforma, com professores doutores chegando a ganhar menos do que especialistas antes da nova legislação. Conforme mostra reportagem da Agência Câmara de Notícias, intitulada "Para debatedores, reforma trabalhista levou a demissões em massa em faculdades", de 2019, essa redução salarial, que em alguns casos ultrapassa 50%, revela um desrespeito profundo à qualificação e à dedicação desses profissionais.
Além das demissões, a precarização das condições de trabalho é evidente. A maior parte dos professores não recebe qualquer apoio financeiro para capacitação e atualização, o que os impede de acompanhar as novas demandas tecnológicas, como a integração da Inteligência Artificial nas salas de aula. Sem um plano de carreira claro, sem estabilidade e com uma remuneração aviltante, a docência particular tornou-se uma profissão de alto risco, na qual a qualidade do ensino fica em segundo plano diante da necessidade de sobrevivência financeira. Assim, vê-se que esse quadro é desolador. É o que aponta também audiências públicas na Câmara dos Deputados realizadas desde 2017, demonstrando que a reforma trabalhista não só precarizou as relações de trabalho dos professores como comprometeu a qualidade da educação superior no Brasil. Com a mercantilização do ensino, as grandes redes educacionais priorizam o lucro em detrimento da valorização do professor, essencial para a formação de novas gerações. A crise, portanto, não é apenas salarial, mas estrutural, refletindo um desmonte do respeito e da dignidade da carreira docente.
A desproporcionalidade da Lei 14.533/2023: uma política desconectada da realidade educacional movida pela indústria educacional privada
A Lei 14.533/2023, que instituiu a Política Nacional de Educação Digital (PNED), chega com a promessa de transformar o cenário educacional brasileiro através da integração digital e da promoção de competências tecnológicas entre alunos e professores. No entanto, a realidade nas instituições privadas de ensino superior mostra um panorama desolador e desconectado das aspirações dessa política. De um lado, estudantes ansiosos e motivados, prontos para aderir às novas tecnologias que prometem modernizar e dinamizar o processo de aprendizagem. Do outro, professores inseguros, pressionados pela instabilidade laboral e pela falta de apoio institucional, lutando para sobreviver em um sistema que desvaloriza sua profissão e ignora suas necessidades formativas.
Enquanto a PNED avança com diretrizes e metas ambiciosas, a prática mostra que a sua implementação está longe de ser equânime. A crítica dos alunos sobre o despreparo dos professores para a incorporação da Inteligência Artificial é válida e preocupante, mas esconde um dilema ainda mais profundo: o desamparo enfrentado pelos docentes. As instituições de ensino superior privadas, focadas na maximização dos lucros, negligenciam a capacitação dos seus profissionais e se aproveitam das flexibilizações impostas pela Reforma Trabalhista para rebaixar salários e precarizar as condições de trabalho. Assim, professores que deveriam ser os agentes de transformação digital encontram-se presos em uma luta diária para manter suas rendas e posições, sem perspectivas de crescimento ou estabilidade.
Esse descompasso é desastroso para o país. A política de educação digital, embora necessária e urgente, falha em considerar a realidade do setor privado, que educa a maior parte dos estudantes de nível superior no Brasil. Com tais evidências, vê-se que não basta oferecer diretrizes; é preciso criar condições para que a transformação educacional seja de fato inclusiva e que os professores possam se qualificar para enfrentar os desafios impostos pela revolução tecnológica. Ao perceber as últimas políticas públicas lançadas pelo Ministério da Educação, percebe-se um esforço para que o Brasil tenha urgentemente ações concretas que obriguem as instituições de ensino a investirem em seus profissionais e a criarem um ambiente de trabalho digno e estável, que permita aos professores se prepararem e se adaptarem aos novos tempos. Contudo, os dados supracitados mostram que tais esforços ainda não estão em prática em muitas IES brasileiras.
A promessa de uma educação digital inclusiva se desmancha diante de um cenário no qual alunos e professores vivem realidades opostas, divididos pelo abismo da desvalorização profissional. Enquanto os estudantes enxergam a tecnologia como uma porta para o futuro, os professores a veem como mais um obstáculo em um caminho já repleto de dificuldades. É um cenário em que o avanço digital corre o risco de se tornar um privilégio para poucos, e não um direito para todos. Como afirma a professora universitária Norma Patricia Araujo de Athayde, "se queremos uma educação transformadora, precisamos começar transformando as condições de quem ensina".
Autora: Jornalista Louise Kataryne Freitas de Oliveira (MTB 1873)
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